Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Neste diálogo vemos claramente a exploração inteligente e detalhada dos atributos de ambas, linha e agulha. O segundo aspecto é a humanização de personagens inanimados, mas que possuem funções. Se existe função, existe contexto de ação. Se existe contexto de ação, existe um procedimento, um modus operandi, um hábito. E se estes últimos existem, tem-se uma personalidade, mesmo em se tratando de objetos.
O curioso é que, mesmo na nossa vida, na interação com os seres animados - as pessoas - encontramos gente sem função, ou então não conscientes de suas funções, portanto as temos como pessoas sem personalidade.
E então, vemos o brilhantismo de Machado de Assis, ao mostrar, através deste seu diálogo, dois objetos inanimados mas que, no entanto, tem consciência de suas funções, suas capacidades e portanto de sua utilidade no mundo prático da vida. E isto só poderia ser expresso no papel por um autor que também tem estas características de personalidade.
No texto, Machado de Assis "se partiu em dois" e deu vida à agulha e à linha. Porções de suas falas podem ter vindo de irmãs, da mãe, das tias ou avós de Machado, e estas pertencem, todas, ao Universo de "atores internos" do mundo machadiano.
Romances em que o autor simplesmente conta casos podem mostrar um contexto em uma época, mas não mostram a exploração de personalidades, procedimento útil para fazer crescer os leitores. Eles até podem se comunicar com o leitor, mas não são a forma genuína de ensino da comunicação, que se dá sempre entre pelo menos duas entidades comunicativas humanas.
O curioso é que, mesmo na nossa vida, na interação com os seres animados - as pessoas - encontramos gente sem função, ou então não conscientes de suas funções, portanto as temos como pessoas sem personalidade.
E então, vemos o brilhantismo de Machado de Assis, ao mostrar, através deste seu diálogo, dois objetos inanimados mas que, no entanto, tem consciência de suas funções, suas capacidades e portanto de sua utilidade no mundo prático da vida. E isto só poderia ser expresso no papel por um autor que também tem estas características de personalidade.
Conclusões
Na comunicação e expressão, o instrumento mais eficiente para se mostrar o potencial do autor são os diálogos. Se o autor usa no diálogo alguém que realmente fez parte de seu Universo interior (sua vida), o valor deste personagem está nas fortes impressões que deixou no autor, pos do contrário não o escolheria. Se um personagem é alguém simplesmente inventado pelo autor, ainda sim este deve ser inspirado em uma ou mais pessoas que ele conheceu, e o valor está na síntese de comportamentos que o autor imputou a este personagem.No texto, Machado de Assis "se partiu em dois" e deu vida à agulha e à linha. Porções de suas falas podem ter vindo de irmãs, da mãe, das tias ou avós de Machado, e estas pertencem, todas, ao Universo de "atores internos" do mundo machadiano.
Romances em que o autor simplesmente conta casos podem mostrar um contexto em uma época, mas não mostram a exploração de personalidades, procedimento útil para fazer crescer os leitores. Eles até podem se comunicar com o leitor, mas não são a forma genuína de ensino da comunicação, que se dá sempre entre pelo menos duas entidades comunicativas humanas.